Corpo, a cura por ele mesmo

autoimune
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Revivendo décadas de hipóteses de autoimunidade

Por Jason Liebowitz, 1 de Setembro de 2015, The Scientist

 

Gerações de pesquisas aprofundadas da anatomia humana, histologia e fisiologia básica, explicam grande parte das manifestações físicas de doenças que atingem quase todos os órgãos do corpo. Da cardiologia à gastroenterologia e pneumologia, a forma implica a função. Não há nenhum mistério, por exemplo, do porquê de um coágulo de sangue entre o coração e o pulmão causar falta de ar, problemas com a oxigenação e pressão sobre os músculos do coração.

No entanto, ainda há uma classe inteira de doenças que não respeitam os limites de sistemas de órgãos e causam estragos na qualidade de vida e na longevidade. E nós ainda temos pouca ideia do que inicia essa cascata. Esta categoria é a das doenças autoimunes, e nosso pouco conhecimento sobre esses transtornos dificulta a capacidade de prevenção, diagnóstico e tratamento.

A dimensão deste problema é imensa. O NIH (Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos) estima que mais de 23 milhões de americanos sofrem de doenças autoimunes – um problema associado a um custo de 100 bilhões de dólares por ano com cuidados de saúde. E a morbidade e mortalidade destas doenças não podem ser ignoradas. Pacientes com artrite reumatoide tem um aumento de 60% no risco de morte por doença cardiovascular, por exemplo. E pacientes com esclerose sistêmica, uma doença autoimune que provoca rompimento da estrutura normal e da função de órgãos como o coração, pulmões e o trato gastrointestinal, apresentam um decréscimo de 16 anos na expectativa de vida em homens e de 34 anos em mulheres.

“A nossa total falta de conhecimento sobre doenças autoimunes dificulta muito a nossa capacidade de preveni-las, diagnosticá-las e tratá-las.”

Nós sabemos muito, ou pensamos que sabemos, sobre os fatores de risco e sobre as manifestações das doenças autoimunes, e até temos alguns testes diagnósticos para detecção de anticorpos que, muitas vezes, estão estreitamente relacionadas com subtipos específicos de certas doenças. Contudo, o mistério biológico fundamental permanece: o que inicia a formação de anticorpos que atacam as proteínas do próprio corpo nos processos destrutivos que definem uma doença autoimune? Será que estes simplesmente falham em detectar uma exposição infecciosa ou ambiental que inicia a cascata de inflamações? Há um benefício acumulado através destes anticorpos que explica sua existência e finalidade biológica?

Embora muitas teorias tenham sido propostas (e continuam a ser postas em respostas a estas perguntas), uma hipótese específica e particularmente interessante foi proposta pela primeira vez na década de 1960 e, se válida, pode ter implicações tremendas para os campos da reumatologia, oncologia, imunologia, neurologia, endocrinologia, entre outros: a doença autoimune poderia representar danos colaterais da luta do organismo contra um câncer em desenvolvimento. Os cientistas reconhecem que pacientes com certas doenças autoimunes tem maior risco de desenvolver um câncer, mas o mecanismo disso ainda não foi identificado. A pesquisa envolvendo pacientes com câncer e esclerodermia revelou que os genes mutantes encontrados nos tumores destes pacientes iniciaram uma imunidade celular e uma resposta com reatividade cruzada, produzindo anticorpos que reagiram com o câncer e que são conhecidos por desempenhar um papel importante contra a esclerodermia (Science, 343:152-57, 2014). A descoberta implica que doenças autoimunes podem surgir como uma consequência não intencional da própria resposta imune do corpo à um câncer em desenvolvimento, que, em certos pacientes, não irá se tornar clinicamente evidente.

Esta ideia não é absurda se considerarmos que certas síndromes desse tipo têm sido reconhecidas há algum tempo. Em pacientes com a síndrome de Lambert-Eaton, que causa danos na sinapse motora, fraqueza e encefalite límbica (inflamação do cérebro que causa danos neurológicos e confusão) são exemplos de condições conhecidas por ocorrerem em reação a um câncer. Mas novos resultados sugerem que todas as doenças autoimunes são devidas à resposta do sistema imune a um câncer.  Se isso for verdade, a detecção de anticorpos específicos pode ajudar a predizer quais pacientes irão manifestar um câncer. De fato, os pesquisadores encontraram que os anticorpos específicos de pacientes com uma certa inflamação muscular e sintomas nas articulações, pele, pulmões e outras partes do corpo, não estão apenas associadas com subtipos específicos destas doenças, mas também podem ser utilizados para prever quais pacientes irão desenvolver certos tipos de inflamações musculares associadas com o câncer (Arthritis Rheum, 67: 317-26, 2015).

Esta ideia de que a resposta do sistema imune às células cancerosas pode desencadear doenças autoimunes abriu a caixa de pandora das questões científicas: Por que alguns pacientes com células tumorais desenvolvem anticorpos autoimunes, enquanto outros não? Seria possível prevenir doenças autoimunes ao invés de esperar para que elas se desenvolvam e se trate as consequências? Talvez a mais importante seja: É possível controlar a potência do sistema imunológico para que este combata de forma mais eficaz o câncer, sem produzir anticorpos autoimunes? Em 2013, editores da revista Science chamaram a imunoterapia do câncer de “A Revelação do Ano”, prevendo assim um novo paradigma na medicina. A compreensão da origem desta autoimunidade é fundamental para garantir a segurança destas terapias, que representam uma nova esperança para milhões de pacientes em todo o mundo.

O momento é propício para resolver este problema desafiador, que é entender a etiologia da doença autoimune. Pelo tempo e esforço investidos nestas questões fundamentais da biologia, nós podemos, esperançosamente, um dia declarar com convicção e clareza: sim, o corpo cura a si mesmo.

Jason Liebowitz é residente de medicina no Centro Médico da Universidade Johns Hopkins Bayview, em Baltimore, Maryland.

Texto traduzido por: Francisco Sassi

Copyright 2015, The Scientist LLC. Todos os direitos reservados. Traduzido e reproduzido com permissão.

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